Policial
Padrão lixo
O Dicionário Eletrônico Aurélio informa que a palavra “lixo” possui os seguintes significados: tudo o que não presta, e se joga fora; entulho; sujidade; coisas inúteis, sem valor; resíduos. Mas para qualquer pessoa com experiência militar a mesma palavra incorpora um conceito que vai além disso.
No ambiente militar o jargão “padrão lixo” significa ser desmazelado. Em certos casos é quase uma marca registrada para a capacidade que algumas pessoas têm para serem desleixadas. “São sempre os mesmos!”, arrematam os militares, informando que o “padrão lixo” e seu aumentativo analítico "padrão lixão" se referem ao comportamento recorrente dos mesmos indivíduos. É... talvez você esteja rindo, mas certamente algum nome ou lembrança lhe veio à memória.
Então, é inadmissível que ainda existam comportamentos nesse “padrão”, considerando que não há um Policial Federal sequer que não tenha sido treinado da melhor maneira possível na Academia Nacional de Polícia (ANP). Também não conheço nenhum professor que tenha ensinado um aluno ou um Policial Federal a portar uma arma de fogo sem coldre ou com apenas um carregador. Ou pior, que tenha dito que não é necessário estar com a arma alimentada e pronta para o uso (carregada, para os militares). Também desconheço qualquer aula sobre a importância de se manter a arma sempre suja e sem manutenção.
Dias atrás conheci um policial que portava a arma de modo velado. Ele era destro, mas a arma estava sobre o lado esquerdo do abdômen. O curioso é que a metade esquerda da camisa estava por dentro da calça, justamente onde estava a pistola. A metade direita da camisa estava para o lado de fora da calça, onde a arma deveria estar. Ou seja, a metade esquerda seguia o traje esporte, enquanto a metade direita adotava o modo “policial à paisana”. Além disso, a pistola não estava alimentada. Diabo! Onde será que ele aprendeu isso? O que ele acha que pode fazer portando uma arma desse jeito? Será que ele imagina que vai ser abordado a 20 metros de distância? Talvez ele nem considere a possibilidade de ser vitimado por um criminoso e ter que reagir para salvar a própria vida. Seria melhor se ele devolvesse a pistola, sinceramente.
Se o policial acredita que portar uma arma de fogo é um fardo, então ele não deveria possuir uma arma em primeiro lugar. Se ele acredita que algo ruim não vai acontecer, então não será capaz de se antecipar ao perigo e se autodefender.
Em princípio, se o policial está armado é porque ele acredita no risco que corre e percebe a arma como um instrumento salvador. Então, seria razoável que ele melhorasse a conduta em relação ao porte da arma para diminuir a possibilidade de erro caso tivesse que reagir. Também seria preferível deixar a arma pronta para o uso, acondicionada num coldre de qualidade e no lado correto do corpo. Pense nisso: muitas vezes o criminoso não precisa se esforçar para ser bem sucedido, a não ser aguardar que o policial cometa um erro. Agora, imagine como seria sacar uma pistola, pressionar o gatilho e só então perceber que a arma não está em condições de ser usada porque você não a alimentou. Você tomou uma decisão, sacou a pistola e pressionou o gatilho esperando ouvir "Pow! Pow! Pow!" e acabou ouvindo "Clic!". Mas não se desanime, porque no final das contas você ainda vai ouvir "Pow! Pow! Pow!", mas vindo da arma do bandido!
Noutro caso, um colega (por quem tenho grande consideração) me pediu para limpar sua arma (a pistola institucional). Antes de entregá-la, ele realizou os procedimentos de segurança à moda antiga, ou seja, apontou a arma para uma direção segura, retirou o carregador, manobrou o ferrolho três vezes, e fez o acionamento em seco do gatilho. Contudo, a pistola tinha tanta sujeira que cheguei a pensar que o policial portava a arma dentro dum refil de aspirador de pó. Então, ficou claro que a tarefa não era uma simples limpeza de 1º escalão, mas sim uma verdadeira escavação arqueológica. Desmontei TODO o ferrolho e limpei peça por peça, remontando o conjunto logo em seguida. Na hora de desmontar TODAa armação, o primeiro pino foi retirado com facilidade, entretanto, o segundo pino sequer se moveu. Um pouco de jeito, um pouco de força, um pouco de lubrificante (faltou o WD-40), um pouco de paciência e... nada! Restou-me apenas realizar uma limpeza básica e devolver a arma ao colega informando sobre o problema e a necessidade de nova tentativa de desmontagem.
Há alguns anos, outro policial me entregou uma pistola (institucional, é claro!) ainda dentro da maleta de transporte. Retirei a arma da maleta, retirei o carregador, mas não consegui abrir o ferrolho por causa da ferrugem. Isso só ocorreu após aplicar muito desengripante. Onde essa arma estava guardada? Dentro de uma caixa d'água?! A Glock aplicou um tratamento denominado Teneferização no ferrolho e no cano das suas pistolas visando aumentar a resistência à corrosão, sendo que as superfícies dessas peças atingem um grau de dureza próximo a do diamante, conforme indica o próprio fabricante. Infelizmente, a Glockainda não conseguiu superar a inventividade de certas pessoas.
Além da preocupação óbvia com a funcionalidade duma arma mal cuidada, é relevante imaginar como estas armas estarão daqui a alguns anos quando forem repassadas aos novos Policiais Federais. Quer dizer, o desleixo de alguns pode colocar em risco a vida da próxima geração de policiais e aumentar os gastos para a reparação ou substituição do armamento projetado para durar décadas. E esse não é apenas um problema das armas curtas, mas também das armas longas (fuzis, submetralhadoras e espingardas).
Alguém ainda pode alegar que não sabe ou não se lembra como realizar a manutenção duma pistola. Isso até poderia ser uma desculpa na década de 90, mas atualmente tal alegação não possui fundamento. Ora, Policiais Federais com 15 anos de experiência retornaram à ANP em 2007 para uma etapa do curso de aperfeiçoamento. Naquela época, o DPF já havia distribuído as pistolas Glock e submetido os policiais ao treinamento básico para manuseio e manutenção do novo armamento. Assim, o treinamento na ANP ocorreu com a Glock. Se isso não bastasse, os alunos da ANP são submetidos à prática do tiro quase diariamente e disparam cerca de 1000 tiros de pistola. Concluído o treinamento, eles tomam posse na 3ª Classe, e após três anos, esses policiais participam de um curso para promoção na carreira policial; uma das disciplinas trata da manutenção das pistolas Glock (20 h/a). Aprovados no curso, os policiais alcançam a 2ª Classe e nela permanecem por cinco anos. Novamente, o DPF patrocina outro curso para promoção policial da 2ª para a 1ª Classe, quando os policiais recebem instruções sobre a submetralhadora HK MP5 (20 h/a).
Alguém também pode afirmar que os dois cursos para promoção na carreira policial são realizados na modalidade a distância. Mas isso não tira o mérito do treinamento nem a necessidade de compromisso do aluno policial. Além disso, toda unidade do DPF possui as armas citadas que podem ser manuseadas em caso de dúvida ou necessidade de aprimoramento (considerando as questões de segurança). Quase todas as Delegacias de Polícia Federal e todas as Superintendências Regionais possuem professores de Armamento e Tiro capacitados para orientar os Policiais Federais sobre todas as armas de dotação do órgão. O SAT/ANP está ciente da demanda por professores de tiro e promove cursos de formação para dotar cada unidade policial com, pelo menos, um professor de tiro. E tenho convicção que nenhum colega com este encargo é capaz de negar qualquer auxílio aos colegas.
Também desconheço organização policial no Brasil que promova treinamentos de armamento e tiro para todo o efetivo como faz a Polícia Federal (PF). Desde 2008, a PF tem comprado munição para treino em quantidades que variam de 400 a 600 cartuchos por Policial Federal e publicado os planos de treinamento em boletins de serviço (235/2008, 176/2009, 056/2010, 023/2011 e 061/2012). Se na sua unidade não há treino, pode ser por duas razões: estrutural (falta de estande e outros equipamentos) e/ou motivacional (o problema mais grave).
Diante da falta de preocupação com a manutenção do armamento pessoal, seria razoável que as organizações policiais desenvolvessem um padrão de inspeção (no mínimo semestral) de todas as armas acauteladas, para identificar aquelas bem mantidas e as mal cuidadas. Reprovado na inspeção, o policial teria alguns dias para apresentar novamente a arma em condição salubre. Por que “reprovado” o policial, e não “reprovada” a arma? Porque a arma é um objeto inanimado, e se ela está mal cuidada, a culpa é do policial. Portanto, reprovado é o comportamento dele.
Obs.: o título do artigo não tem a intenção de menosprezar ou ofender qualquer policial sob qualquer circunstância, mas tão somente demonstrar a preocupação com as condições do armamento acautelado e chamar a atenção para o perigo de certos comportamentos relacionados ao porte e manutenção da arma para o próprio policial e para os que virão a seguir.
Humberto Wendling é Agente de Polícia Federal e Professor de Armamento e Tiro lotado na Delegacia de Polícia Federal em Uberlândia/MG. E-mail: [email protected] Blog: www.comunidadepolicial.blogspot.com Twitter: twitter.com/HumbertoWendlin
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