A presa.
Policial

A presa.



Dedicaria uma vida a estudar certos fenômenos psicológicos que acontecem no mundo policial, caso eu fosse uma psicóloga na polícia.

Eu, com armamento pesado nas mãos, tinha que ficar esperta enquanto fazia a segurança dos colegas que procediam à busca na casa dela. E ela estava ali na minha frente. Eu não a tinha, ainda, visto assim, de perto, mas já havia estudado o perfil dela pelas informações que me passaram. Tinha 26 anos e uma casa caída. Tentei ler seus pensamentos. Ela mostrou-se preocupada durante toda a busca, mas parecia mais um ar normal de preocupação. Até eu também ficaria preocupada com a polícia dentro da minha casa mexendo no meu guarda-roupas, ora. Já o namorado dela, rá... tava na cara. Era culpado, sim! Eu li isso com todas as letras na forma como ele perdia o olhar enquanto ensaiava mentalmente desculpas para o caso de encontrarmos o material.

Sentiu a diferença? Não queria ser desagradavelmente enfática nesses detalhes, mas a maioria dos homens que conheço são previsíveis como uma sequência nas músicas do Renato Russo, basicamente três notinhas num violão: Lá, Sol, Ré... e eu já sei como essa música vai acabar. Já nós, mulheres somos feitas de improviso, tipo BB King Jazz in Concert com sétima em sustenido maior que a minha capacidade de assimilação.

O chefe da operação era um delegado "zerinho" e desnorteado que não tinha noção sequer do que estava fazendo ali. Quase passou mal quando o colega gritou para que abrissem logo aquela porta. De forma que, na hora de voltar pra delegacia, em vez de determinar logo como faríamos, perguntei: "Chefe, e aí? Como é que o senhor vai querer levar esses dois?" Ao que ele me respondeu, com os olhos meio assustados pela pergunta: "Ah, não, ó... Vocês que sabem aí, o que vocês acharem melhor, tá? Eu tô aqui só pra blábláblá...". Eu já sabia... Vocês também. "Então ele vai aí com vocês e ela vem aqui comigo".

E assim foi feito. A menina foi conduzida ao banco de trás da minha viatura, em silêncio e de cabeça baixa.

Sentei-me do lado dela e comecei a arquitetar uma nova estratégia. Ela se mostrava muito envergonhada, provavelmente porque era outra mulher (eu) que estava do lado dela. E era esse sentimento mesmo que seria usado contra ela - a vergonha. Mas não agora. Quando a viatura começou a andar eu disse: "você sabe porque está sendo presa, não sabe?". Porque a gente é que não tinha certeza se ela era a vendedora no áudio (interceptações telefônicas). A pergunta foi como um tapa na cara e ela desatou a chorar, articulando arrependimentos extemporâneos e deixando o cabelo ombré esconder o rosto visivelmente quente. E logo começou a vomitar sentenças que conectavam as informações que eu já tinha. Era ela mesma!

Sem pressa, esperei ela parar de chorar. Quando ela ficou mais calma, senti que era hora de avançar mais um pouquinho. A garota estava sozinha dentro de uma viatura com três policiais, sem saber pra onde estava sendo levada. Qualquer um que lhe oferecesse uma cobra dizendo que era uma corda ela agarraria pra sair dessa. Cutuquei a perna dela de leve com a minha, pra estabelecer uma conexão e disse com voz bem tranquila, como quem só quer ajudar: "Olha, você não precisa falar nada pra mim, não, tá? Pode ficar calma, esperar seu advogado. Tá tudo bem?". Ela respondeu que sim! Putz, ela estava realmente apavorada! Aposto que a vontade dela era deitar a cabeça no meu colo e chorar até amanhã pedindo perdão. E eu tive pena. Até achei que essa seria uma prisão bacana, que eu faria com prazer. Mas na hora "H", eu tive pena one more time.

Então comecei a puxar na minha memória o que esta... criatura falava ao telefone (xingar vagabundo é muito cliché mesmo para blogs policiais). Tem certos crimes que mexem mais com a gente do que outros, pela covardia do autor, pela fragilidade das vítimas, pelas sequelas emocionais que deixam nos envolvidos, pelos sinais de maldade no coração. Ou, simplesmente porque a pessoa não se toca do mal que está fazendo, como se sua mente obscena estivesse cauterizada. Esse tipo faz as pupilas da gente dilatar de raiva. Contudo, essa guria estava, pelo menos, envergonhada. Era um bom sinal. Vai ter tempo agora pra parar e pensar no que fez da vida. Sempre tenho esperanças.

Esse sentimento dela, de vergonha, foi meu fórceps. Cada um tem seu jogo, mas todo bandido tem mãe. A dela era evangélica praticante. Essa menina provavelmente foi criada na igreja, frequentou Escola Bíblica Dominical, cantou no coralzinho infantil, sabia histórias de personagens bíblicos como Sansão, Davi, Moisés... sabia perfeitamente bem as consequências espirituais das suas atitudes. Posso deduzir que tinha curiosidade para conhecer o mundo fora da igreja e achou que tinha condições de "andar à beira do abismo", bancando o risco sob a desculpa de que Jesus comia com pecadores. Baixou a guarda, trouxe despojos de guerra para casa, se envolveu com o cara errado e deu nisso. Porém, mãe é mãe. E mãe de bandido sofre miseravelmente! Essa parte da investigação na casa da mãe dela tinha ficado comigo, fiz campana lá com outro colega um tempão. É ótimo fazer campana quando se é mulher, ninguém imagina que é isso o que você está fazendo lá, sentada na calçada batendo bapo. Por isso eu sabia que era por aí.

Eu apenas mirava o coração quando disparei: "Eu só tenho pena da sua mãe, quando ela souber disso". Essa frase deve ter doído mais do que qualquer outra coisa que eu pudesse ter-lhe feito. Era a verdade pura, nua e crua. E a verdade dói mais que uma surra. Mas acabei atingindo também o cérebro, porque ela entendeu que a polícia sabia de tudo da vida dela (mentira e eu não disse isso). Mas já que veio como bônus, não desmenti a falsa conclusão a que ela chegou. O fato era que tínhamos virado a mesa e agora ela que queria saber desesperadamente o que nós "Agentes de Preto" sabíamos. Medo, né? E chorou de soluçar. Ela era menos esperta do que eu imaginava. Nesse momento eu já estava fria como um cadáver jogando xadrez.

Honestamente, confesso que não sabia direito qual a próxima peça que ela estava pensando em mexer. Nem queria cantar meu jogo pra ela. Decidi aproveitar a vantagem tática e lancei-lhe uma sucessão de verdes, cujo resultado foi a colheita completa e completamente madura. Sem eu triscar um dedinho sequer nessa criatura, juro, ela abriu toda a história, os nomes que faltavam no organograma da quadrilha, as quantidades, a coisa toda e eu só mandei pra frente.

Enfim, terminados os trâmites legais na delegacia, ela seria levada para outro local. Vi a irmã dela chegando, mas preferi sair fora logo pra não ser vista pela mãe. A minha missão tinha acabado. Nesse dia, nossa equipe precisou estar pronta na delegacia às quatro da manhã para o brieffing e agora eu já estava morta de cansada. Não obstante, o mais bizarro de tudo é que dirigindo de volta pra casa me imaginei atualizando O MEU perfil e inserindo: "pessoa fria, manipuladora e calculista", características que curiosamente mais me chamaram a atenção no modus operandi dela. Preciso dormir.



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