Imagine que você participou de um treinamento de autodefesa policial que incluiu estatísticas sobre policiais mortos, histórias terríveis sobre violência, e talvez um ou dois assassinatos gravados por circuitos de TV.
Você terminou o curso impressionado com o potencial de ser a próxima vítima do crime e da violência mesmo sendo um policial. Então, você fica alerta, consciente, observa as redondezas, sendo mais cauteloso sobre pessoas que considera potencialmente suspeitas. Mas, quantos dias você acha que isso vai durar?
Com o tempo, a ausência de consequências perigosas reais faz você relaxar. E apesar de você estar interessado na sua segurança e possuir o conhecimento do que deve ser feito, você não consegue agir adequadamente. Suas habilidades de sobrevivência, seu estado de alerta logo começam a desaparecer. Por quê?
Porque o cérebro está orientado para automatizar comportamentos repetitivos, pois é a maneira como os seres vivos trabalham. Muito do comportamento humano diário é automatizado, e isso acontece sem você perceber.
Psicólogos estimam que mais de 90% desse comportamento humano diário ocorre sem consciência ou pensamento deliberado. Atividades repetitivas tornam-se ações automáticas para liberar sua atenção para coisas que são novas, desconhecidas ou ameaçadoras. Se não fosse dessa maneira sua mente ficaria sobrecarregada e seria sobrepujada com a mais simples das tarefas.
Assim, pessoas expostas periodicamente a lugares altos reduzem seu medo de altura. Pessoas com dificuldade de falar em público sentem-se mais confiantes em frente desse público depois de exposições habituais. Do mesmo modo, pessoas que são rotineiramente expostas a situações potencialmente perigosas tornam-se menos cuidadosas em tais situações. Isso se chama habituação.
É bem verdade que o hábito ou a rotina facilita e põe ordem no seu trabalho e na sua vida, pois é sua experiência acumulada ao longo do tempo trabalhando para você de modo automático. Contudo, exposições habituais a determinadas ocorrências, mesmo que perigosas, entediam seu mecanismo de autodefesa. Então, a rotina trabalha contra você quando se é exposto muitas vezes a situações potencialmente arriscadas onde nada acontece, e depois de uns 10 anos, ela mata um número considerável de policiais.
De acordo com os relatórios anuais do FBI sobre policiais mortos e agredidos, o tempo médio de serviço dos policiais mortos nos Estados Unidos é de 10 anos, e a média de idade desses policiais é de 36 anos. Nem um “novinho”, nem um “antigão”, mas alguém no meio da carreira, se você considerar que um policial brasileiro precisa ter 20 anos de serviço estritamente policial para se aposentar.
“Nada é rotina!”, “Evite a rotina!” e “Os maiores inimigos do policial são: a rotina e o excesso de confiança!” são algumas das frases que nós, instrutores, repetimos desde que começamos a falar sobre sobrevivência policial. Mas, você já deve estar cansado de ouvir isso!
A realidade é que barreiras policiais, buscas e apreensões, prisões, entrega de intimações, entrevistas e interrogatórios, condução de presos e outras ocorrências onde nada acontece são, de fato, rotina. Você pode chamá-las do que quiser como “baixo risco”, “alto risco”, mas o nome não altera as mudanças inconscientes que ocorrem dentro da sua mente quando você realiza tarefas sem consequências centenas de vezes ao longo dos anos.
O fato é que palavras ou frases não protegem nem matam policiais. Mas, o que você precisa perceber é que atividades diárias realizadas repetidas vezes, ano após ano, tornam o risco inerente cada vez mais invisível, e quando isso acontece você tende a fazer uma de duas coisas: se torna complacente com os perigos dessas atividades ou aumenta sua exposição ao risco para satisfazer sua necessidade natural de emoção. As duas coisas caminham lado a lado e se complementam. Não é por acaso que a complacência e o comportamento de risco estão diretamente ligados a um grande número de policiais mortos não só por criminosos, mas também por acidentes.
Você também precisa entender que enquanto abordagens de modo geral tendem a ser a atividade mais comum, qualquer coisa pode se tornar rotina se feita muitas e muitas vezes sem que algo ocorra para estimular sua percepção de que qualquer operação é um evento desconhecido cheio de riscos e imprevistos.
Talvez você não acredite, mas o perigo, o risco e a incerteza são alguns componentes que tornam o trabalho policial atraente para muitos policiais ou pelo menos para os policiais natos. Por isso, eles têm não só certa tolerância ao perigo, mas uma verdadeira necessidade dele. Não é incomum esse tipo de policial se sentir desestimulado e “sem rumo” ao ser designado para atividades administrativas ou consideradas sem importância.
É fato que alguns policiais ajustam seu comportamento para manter a exposição ao risco no nível que precisam. Eu chamaria isso de regulador fatal.
Deste modo, se a rotina torna o risco existente na atividade policial invisível, você irá inevitavelmente assumir riscos adicionais. E isso acontece quando você não espera o reforço, avança um sinal vermelho sem diminuir a velocidade, entrega sozinho uma intimação, vai só ao encontro com um informante, algema o preso para frente ou não algema, dorme dentro da viatura, confia na denúncia anônima, etc. Mas a verdade é simples: quanto maior o risco assumido, maior a chance de você morrer.
Não estou dizendo que policiais querem ser mortos, mas eles procuram estar presentes em uma variedade de situações arriscadas ou não se sentem policiais. Afinal de contas, eles correm em direção ao perigo, e não ao lado da multidão em pânico.
O mesmo tende a ocorrer com a complacência. Nada melhora suas habilidades de sobrevivência quanto ter um criminoso tentando ferí-lo ou matá-lo. O problema com este tipo de “motivação” é que você se arrisca a ser ferido gravemente ou morto no mundo real. E essa não é uma espécie de motivação que faça qualquer sentido.
Portanto, é hora das organizações policiais introduzirem gradualmente treinamentos que previnam a complacência e o comportamento de risco independentemente do tempo de serviço dos policiais. Pois é tarefa de cada policial se preparar para estar no auge da capacidade de sobrevivência, não importando as vezes que você já atendeu o mesmo tipo de ocorrência, na mesma cidade, no mesmo bairro, no mesmo comércio, procurando pelo mesmo bandido de sempre, no mesmo beco, nestes últimos 10 anos.
Humberto Wendling é Agente de Polícia Federal e Instrutor de Armamento e Tiro lotado na Delegacia de Polícia Federal em Uberlândia/MG.
E-mail: [email protected]
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